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O espírito no tempo


» Parte 1 da série “Para ser um médium” ver a introdução


O homem, as gerações humanas, morrem no tempo. Mas o espírito não. O tempo é o campo de batalha e que os vencidos tombam para ressuscitar. Quem poderia deter a evolução do espírito no tempo? (J. Herculano Pires)

Ernesto Bozzano foi um pesquisador e intelectual italiano com grande interesse em antropologia, sociologia, evolução e as origens da mediunidade no palco obscuro da pré-história. Num de seus livros ele inicia suas exposições dizendo que “se consultarmos as obras dos mais eminentes antropólogos e sociólogos, notamos que todos concordam em reconhecer que a crença na sobrevivência do espírito humano se mostra universal”. Na época em que Bozzano publicou seus primeiros livros, no final do século XIX, falar abertamente sobre “espírito” ainda não era tão escandaloso na Academia. Os espiritualistas europeus daquela época, muitos influenciados pelas ideias expostas nos livros de Allan Kardec, eram igualmente grandes entusiastas da teoria de Darwin-Wallace… Mas, enquanto esta se ocupava exclusivamente da evolução física das espécies, alguns espiritualistas – dentre eles o próprio Wallace – se interessavam em tentar elucidar a evolução espiritual, particularmente em como o espírito humano havia evoluído através do tempo.


Se saltarmos diretamente para a época em que os primeiros hominídios surgiram no tempo, podemos nos aproveitar de uma bela, simples e elegante teoria proposta pelo arqueólogo Steven Mithen, conforme exposta em A pré-história da mente: Mithen acreditava que algumas potencialidades da mente eram suficientemente conectadas entre si para que pudessem ser agrupadas conceitualmente em módulos mentais… A inteligência geral foi herdada das outras espécies das quais os hominídios evoluíram, e é responsável pelos processos básicos de instinto e sobrevivência; A inteligência naturalista desenvolveu-se ao longo da persistente guerra da fome – o conhecimento do terreno em sua volta, a análise dos rastros de presas livres deixados no solo, o cuidado para evitar plantas venenosas, etc.; A inteligência técnica permitiu o manuseio de objetos e até mesmo a elaboração de ferramentas, como pedras pontiagudas que facilitam o corte da carne das presas abatidas; E, finalmente, a inteligência social evoluiu desde que nossos ancestrais reconheceram que caminhar pelo mundo em bandos era mais seguro do que enfrentar as caçadas sozinho.

Mithen acreditava que o que nos separava definitivamente dos outros hominídios de inteligência primitiva era a interseção entre tais módulos mentais, que parece ter ocorrido de forma mais abrangente no homo sapiens. Subitamente, os dentes de animais caçados, que antes eram descartados, se tornaram decoração de colares; Colares estes que também serviam para demonstrar para outros membros (e mulheres, quem sabe) da mesma tribo quão bons eram os caçadores que os ostentavam; Da mesma forma, as pegadas deixadas na terra pelas presas tornaram-se também símbolos que demonstravam o tamanho e a direção em que o animal se deslocou; E logo tanto símbolos naturais quanto animais quanto os próprios homens se fundiram em pictogramas pintados em cavernas profundas – registros da história de um povo que se reconheceu como povo; Talvez ao mesmo tempo, surgiram os mitos, as forças naturais tornadas meio-homem, meio-animal, meio-espírito, meio-deus – a religião ancestral surgia em meio ao animismo e ao xamanismo, juntamente com a consciência de nossa vida e nossa mortalidade.

A teoria de Mithen não têm absolutamente nada de espiritualista, como podemos ver, mas a sorte de sermos espiritualistas é que não precisamos ignorar as teorias daqueles que não creem em espíritos. Se alguns sentem-se escandalizados com a possibilidade do espírito ter surgido antes do homem, e ser formado por matéria fluida, parte dos 96% da matéria cósmica que não interage com a luz, e que vêm habitando corpos das mais variadas espécies, desde organismos unicelulares até os hominídios e animais com cérebro adequado para comportar um espírito em processo de individualização consciente, numa odisseia multimilenar que caminha lado a lado com a evolução descrita por Darwin e Wallace, deixem estar: lembremos que boa parte de nossa compreensão espiritual se baseia em experiências subjetivas, e que a matéria fluida, espiritual, ainda não foi detectada em laboratório.

Ainda assim, nos anais da pré-história humana, e das primeiras tribos e civilizações, permanece a dúvida objetiva: como podem tantas comunidades isoladas terem chegado a crenças tão parecidas? Em realidade, as crenças nem são tão próximas quanto às atividades místicas em si: a mediunidade, esta sim, conecta de forma definitiva todos os povos primitivos da Terra, sem exceção.

Define-se religião primal como um “sistema de crenças anterior às grandes religiões mundiais”. As religiões primais seguidas por povos tão distintos quanto os inuítes da América do Norte e os aborígenes australianos são variadas, mas com amplas similaridades. Os adeptos ainda hoje vivem quase sempre isolados e privados das comodidades modernas. Enfrentam rigores climáticos, escassez de comida e desastres naturais. Suas crenças lhes dão suporte para lidar com esses problemas. Seus milhares de espíritos ou divindades os ajudam a lidar com as forças naturais, e suas práticas religiosas variam desde experiências místicas e extáticas, normalmente guardadas aos médiuns ativos, até coisas bem mais práticas, como perguntar a um espírito qual a região próxima mais apropriada para a caçada de amanhã…

Muitos chamam tais médiuns ancestrais de xamãs, mas este é um termo surgido na Sibéria, e significa algo como “aquele que enxerga no escuro” na língua local. Mas sejam xamãs, ou pajés, babalorixás, iogues, curandeiros, feiticeiros, etc., todos são em essência médiuns, e suas práticas de comunicação com espíritos, sejam os seus próprios, sejam os de fora, são, estas sim, a grande prática universal que os conecta a todos, e assim conecta a humanidade como um todo, desde sua origem. Conforme disse o Chefe Seattle em sua carta ao presidente americano: “Todas as coisas são interligadas, como o sangue que nos une. O homem não tece a teia da vida – ele é apenas um fio dela. O que fizer à teia, fará a si mesmo.”

Como por vezes é complexo identificar como exatamente tantas sociedades primitivas chegaram a ideias e símbolos tão elaborados e “fora da realidade”, muitos antropólogos preferem deixar tudo a cargo das experiências psicodélicas induzidas por alucinógenos naturais. Por exemplo, há escritos do hinduísmo, que é reconhecidamente uma das religiões mais antigas do globo, que louvam a soma, uma planta alucinógena. No Brasil muitos já conhecem o Santo Daime, que é uma doutrina religiosa totalmente baseada nos costumes de povos da grande floresta amazônica, que consomem o chá de ayahuasca a fim de desencadearem experiências místicas… Esta explicação, porém, é incapaz de dar conta de todas as experiências mediúnicas, pois sabemos melhor do que ninguém que a mediunidade hoje pode ser praticada sem o consumo de qualquer tipo de substâncias alucinógenas, e, de fato, esta é a recomendação da grande maioria das doutrinas espiritualistas de hoje em dia. Não há a menor razão para crermos que na pré-história todos os médiuns usavam substâncias do tipo – na verdade, há razões para crer que eles eram minorias localizadas em algumas regiões do globo onde era possível extrair tais substâncias da natureza. Não haviam cogumelos alucinógenos em todas as partes do planeta.


Talvez a religião primal que mais intrigue os antropólogos materialistas seja a religião nativa do Japão que, a despeito do país ter se tornado um verdadeiro polo tecnológico e comportar provavelmente a sociedade mais moderna do mundo, continua plenamente ativa. O xintoísmo, ou “o caminho dos deuses”, foi o título dado à religião nativa do Japão aproximadamente em 720 d.C., poucas décadas após a chegada do budismo na ilha. A questão é que se trata de uma religião pré-histórica, que só foi nomeada em razão de diferencia-la do budismo, recém chegado. Antes o xintoísmo era apenas “a religião”. O xintoísmo reconhece diversos seres divinos chamados kami, supostamente infinitos, que preenchem tudo o que exibe poder ou força vital. Para os japoneses, a natureza é literalmente divina.

Como sabemos, a natureza não é somente divina, como potencialmente viva. Nos dias atuais, presos em nossas selvas de concreto, talvez tenhamos esquecido de como um pequeno galho partido é apenas a parte morta de uma árvore, mas que irá se decompor e formar novamente coisas vivas… Ou que mesmo uma pedra abriga tanto parte da matéria que forma nossos corpos, como parte da matéria que formará espíritos das eras vindouras, embora hoje estejam confortavelmente dormindo no ventre sagrado da Mãe Terra, esperando o chamado do Pai Céu…

Termos antigos, conhecimento antigo, intuição antiga. Certamente tinham uma compreensão precária, parcial, da natureza à volta. Mas, estariam todos eles errados em tudo o que perceberam? Talvez a essência daquilo que viram e sentiram em suas experiências mais sagradas seja exatamente aquilo que falte hoje no mundo moderno. Alguns japoneses o sabem, e também alguns xamãs em meio ao frio do norte, alguns aborígenes, alguns indígenas, alguns poetas, alguns médiuns… Talvez você possa ser um deles, talvez já o seja. Esta é a nossa história, a história do espírito no tempo. Caberá a você escrever os próximos capítulos.

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Leitura recomendada: O espírito e o tempo, de J. Herculano Pires (Paidéia). Religiões, de Philip Wilkinson (Zahar, Guia Ilustrado).

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Crédito das imagens: [topo] Edward S. Curtis/Corbis (indígena da ilha de Nunivak, no Alasca – EUA, com sua máscara cerimonial); [ao longo] Rainer Hackenberg/Corbis (um torii, símbolo xintoísta, em Kyoto – Japão)

O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.


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